Ao longo dos últimos 20 anos, a sobrevida dos pacientes oncológicos vem aumentando progressivamente, devido aos avanços no tratamento e no diagnóstico das neoplasias. Entretanto, essa melhora pode ser limitada pelos efeitos adversos associados ao tratamento antitumoral. Particularmente, a cardiotoxicidade pode comprometer a efetividade da terapia antineoplásica, independentemente do prognóstico oncológico, afetando a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes.
A cardiotoxicidade é a segunda causa mais comum de morbidade e mortalidade nos pacientes com tratamento oncológico prévio, perdendo apenas para as causas oncológicas (recidiva ou neoplasia secundária).
O acometimento cardiovascular inclui o diagnóstico de novos problemas cardiovasculares ou a exacerbação de uma doença cardiovascular preexistente, sendo que a cardiotoxicidade tende a ser um problema cada vez mais diagnosticado, tanto pela maior sobrevida dos pacientes oncológicos quanto pela associação mais frequente de quimioterápicos com potencial de cardiotoxicidade. Além disso, com o avanço do tratamento oncológico, pacientes cada vez mais idosos são passíveis de tratamento e estes podem ter doenças e/ou fatores de risco cardiovasculares preexistentes.
As complicações cardiovasculares da terapia oncológica podem ser divididas nas seguintes categorias: disfunção miocárdica e insuficiência cardíaca (IC); doença arterial coronariana; doença valvar; arritmias; hipertensão arterial sistêmica; doença tromboembólica (por exemplo, tromboembolismo pulmonar); doença arterial periférica e acidente vascular cerebral; hipertensão pulmonar; e complicações pericárdicas. Destas categorias, a mais preocupante é a disfunção miocárdica/IC.
A disfunção miocárdica/IC é um efeito colateral relativamente comum e grave do tratamento oncológico. Por exemplo, sobreviventes de câncer pediátrico tratados com antraciclinas e/ou radioterapia mediastinal têm uma chance quinze vezes maior de desenvolver IC ao longo da vida quando comparados a indivíduos controles.
Dentre as classes de quimioterápicos que podem ocasionar cardiotoxicidade, a mais estudada até a atualidade é a das antraciclinas.
A cardiotoxicidade causada por antracíclicos é chamada de tipo I e ocorre de forma dose-dependente, causa lesão miocárdica e geralmente não é reversível. Já a cardiotoxicidade tipo II (causada por trastuzumabe, sunitinibe ou sarafenibe, por exemplo), não tem relação com dose cumulativa, causa disfunção ou invés de lesão miocárdica e geralmente é reversível.
O desenvolvimento de disfunção miocárdica assintomática ou IC pode ser dividido em três tipos distintos, de acordo com o momento de início: aguda (ocorrendo após uma única dose ou um ciclo, com início das manifestações clínicas em até duas semanas após o término do tratamento), subaguda e crônica de início precoce (desenvolvendo-se dentro do primeiro ano após o término do tratamento). Esta é a forma mais frequente e clinicamente relevante, usualmente apresentando-se como cardiomiopatia dilatada e/ou insuficiência cardíaca); crônica de início tardio (ocorrendo anos ou mesmo décadas após o término da quimioterapia).
Os fatores associados a um maior risco de cardiotoxidade por antraciclinas são: dose cumulativa, sexo feminino, idade superior a 65 anos ou inferior a 18 anos, insuficiência renal, associação com outros quimioterápicos (particularmente agentes alquilantes, antimicro-túbulos ou anticorpos monoclonais), radioterapia prévia ou concomitante envolvendo o território cardíaco, hipertensão arterial sistêmica e fatores genéticos.
A hipótese para o mecanismo fisiopatológico de cardiotoxicidade associada a antracíclicos é o aumento do estresse oxidativo, com geração de espécies reativas de oxigênio e lesão da membrana de cardiomiócitos por peroxidação lipídica. Mais recentemente, descobriu-se que a cardiotoxicidade associada a antracíclicos pode ser mediada pela ligação desses agentes ao DNA e à Topoisomerase 2-β nos miócitos cardíacos, resultando na formação de um complexo que culmina com morte celular.
A fim de se minimizar a ocorrência de efeitos colaterais cardiovasculares, uma nova subespecialidade vêm emergindo ao longo dos últimos anos: a Cardio-Oncologia. Nesse contexto, os oncologistas e cardiologistas têm particulares responsabilidades e desafios nessa aliança interdisciplinar, o que inclui uma avaliação inicial cuidadosa antes do início de quimioterapia potencialmente cardiotóxica, com controle adequado dos fatores de risco cardiovasculares preexistentes, seguido por monitorização periódica de sinais precoces de toxicidade cardiovascular e implementação de medidas preventivas ou terapêuticas adequadas.
Fonte: Hospital Israelita Albert Einstein, 2018. "Quimioterapia e Coração". https://bit.ly/2yhCEh9